Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

ANO 20 • • Nº 37

ÓRGÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

Porto Alegre | RS

Autor

Rui Annes

Psicanalista SPPA

O relógio do consultório

  • Maria de Fátima Annes - Ligações (acrílico sobre tela) 2020

Eram 10 horas da manhã, marcava o relógio de parede no consultório, em meados de abril. O sol não apareceu e uma massa de nuvens pesadas indicava que a chuva se aproximava. Eu estava sentado na poltrona e olhava, ao meu redor, o consultório, agora escuro. À minha esquerda, o divã e as almofadas, o armário de livros, outra poltrona, a cômoda, a escrivaninha, a tela do computador e o celular, à espera do paciente que não veio. A chuva chega muito forte, assim como o vento, que causa estrago às árvores e vidraças. É uma tormenta. Do meu lugar, tenho uma imagem de vazio, silenciosa e até desoladora. A visão da sala oprime entre a irrealidade e a realidade de um sonho pesado. Outro paciente desmarca. Folheio um livro que tenho à mão, onde encontro o trecho de uma carta de Freud a Arnold Zweig, de março de 1938:

“Quatro semanas atrás foi realizada mais uma das minhas operações normais, seguida por uma incomum e violenta dor, por isso eu precisei cancelar meu trabalho por 12 dias, deitei com dor e garrafas de água no divã que era destinado a outros.”

Isso foi uma semana depois de as tropas alemãs terem atravessado as fronteiras da Áustria para incorporá-la ao Terceiro Reich. No dia seguinte, a Gestapo levou Anna Freud para interrogá-la. Ela carrega consigo, escondida, uma dose letal de Veronal, dada pelo médico da família, Dr. Schur. Somente depois de muitas horas é liberada. A partir desse acontecimento, Freud decide que irá emigrar…

Continua a chover forte. A sala está iluminada pela lâmpada de leitura. Pela janela, vejo a rua deserta e um homem que luta para manter seu guarda-chuva aberto, tal era a força do vento. Desiste e acelera o passo, até sumir do meu campo de visão. Agora a rua está verdadeiramente deserta.

Retomo a leitura:

Em uma manhã úmida de maio de 1938, o jovem fotógrafo Edmund Engelman visita os apartamentos 5 e 6 na Berggasse 19, na companhia de August Aichhorn, amigo e colaborador de Freud. Realiza uma sessão de fotos horas antes de a mudança ser enviada a Londres. No posfácio ao livro que reúne essas fotografias, Engelmann detalha como trabalhou. Para não levantar suspeitas — pois o prédio era mantido sob constante vigilância da Gestapo —, descartou o uso de lâmpadas e flashes. A luz fraca e as sombras profundas que se projetam sobre os objetos, captadas pelo fotógrafo, contribuem para acentuar o caráter ameaçador e a precariedade da situação antes da fuga.

O relógio na parede do consultório marca 11h50min. Chega a mensagem de um paciente informando que não fará sessão (por vídeo). Um recado de casa alerta que a cidade e o trânsito estão caóticos, com alagamentos, árvores caídas, semáforos apagados… Melhor não sair do consultório. Sigo a leitura:

Em 4 de julho de 1938, depois de saldar o imposto por abandono do Reich e sofrer as consequências da expropriação da propriedade judaica, Freud dá as costas para sempre ao edifício na Berggasse 19, onde viveu e trabalhou durante 47 anos. Leva consigo o álbum de fotos, presente do próprio Engelman. Freud gostou de sua nova casa, em Maresfield Gardens, em especial a bela vista do jardim. Consta que, graças à memória esplêndida da empregada Paula Fichtl, que acompanhou a família, as antiguidades encontraram o seu lugar. Freud deve ter se sentido imediatamente em casa com a sua coleção de antiguidades e, em particular, com a “floresta” de esculturas sobre sua escrivaninha. Porém, Freud sabia que elas tinham perdido definitivamente o seu lugar ancestral. Em carta a Margaret Wittgenstein, observou:

“Todas as nossas coisas chegaram intactas, as peças das minhas coleções têm mais espaço e causam mais efeito do que em Viena. Entretanto, agora a coleção está morta, nada mais lhe será acrescentado. E, quanto a seu proprietário, ele está quase tão morto quanto ela.”

Mais de sessenta anos depois, o artista norte-americano Roberto Longo tomou as imagens do livro de Edmund Engelman como base para o “Ciclo Freud” (2000), uma série de gigantescos desenhos a carvão que alteram a chave realista da fotografia para destacar, no cotidiano e no banal, a gravidade da história. O ponto de partida desses trabalhos são as fotografias, reinterpretadas e modificadas pelo artista. A ampliação ameaçadora faz desaparecer o caráter documental. São desenhos que materializam o tempo perdido e a casa deixada para trás. O mesmo tema apresentado com nova caligrafia torna-se decisivo, o que materializa uma distância.

Entre as diversas imagens da exposição, encontram-se a bandeira com a suástica, o olho mágico da porta da residência, a placa de metal “Prof. Dr. Freud 3-4”, o consultório, as figuras avulsas de porcelana, um detalhe da escrivaninha, uma grande lareira vienense de ladrilhos. Em nenhuma delas aparece um morador. O vazio oprime, pois se sabe que essas imagens não contêm mais do que o resumo de um tempo perdido. Resta simbolizada a morte, produzida e organizada de maneira industrial. Quem visita hoje o número 20 de Maresfield Gardens, em Hampstead, verá a coleção de Freud intacta, incluindo o impressionante conjunto de estatuetas de diversas culturas sobre a escrivaninha. Para Freud, a coleção representa o que ele denominava de “a esplêndida diversidade da vida humana”, “os vários tipos de perfeição”. Esses “velhos deuses encardidos” são também testemunhos da passagem do tempo e da finitude da vida, além de remeterem ao curto, e excelente, texto de 1916, “Sobre a transitoriedade”.

É curioso observar que Robert Longo desenhou uma escrivaninha completamente vazia. “Fiz muitos sacrifícios”, escreve Freud para Stefan Zweig, “para reunir minha coleção de antiguidades gregas, romanas e egípcias, e, de fato, li mais a respeito de arqueologia do que de psicologia.” Todos esses objetos foram simplesmente varridos da escrivaninha por Longo. A imagem torna-se símbolo do vazio e do exílio. Reflete a ausência dos mortos. Essa é uma linguagem pictórica do nosso tempo.

A chuva parou e o céu está claro. O relógio do consultório marca 14h, horário da próxima consulta… e o paciente está na tela do computador.