Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

ANO 20 • • Nº 37

ÓRGÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

Porto Alegre | RS

Autor

Sergius Gonzaga

Professor de Literatura da UFRGS, coordenador de Humanidades da Secretaria de Cultura de Porto Alegre.

A agonia da razão

  • Maria de Fátima Annes - Interações (acrílico sobre tela) 2020

Sabemos por registros históricos e literários que as pestes, assim como os grandes cataclismos naturais, sempre representaram um tipo de situação-limite coletiva em que parte da humanidade (ou toda ela) – ao perceber as ameaças de um cosmos ininteligível e defrontar-se com a nudez aterrorizante de sua finitude – instintivamente apega-se a inúmeras formas de irracionalidade e superstição. Sabemos também que, a partir do século XVIII, o pensamento iluminista e os notáveis avanços científicos impuseram à realidade uma contínua “desmagicização”, golpeando as interpretações míticas que colocavam o mundo sob a tutela do sobrenatural. A “deusa Razão” se impôs como critério de verdade ou, pelo menos, como o princípio nuclear que deveria reger as relações dos homens entre si e com o universo.

Quase três séculos depois do triunfo das Luzes, uma inesperada pandemia desencadeia ondas de insensatez e de rejeição ao pensamento científico. São ondas que varrem o planeta, mas que encontraram o paraíso perfeito para se reproduzir: um país tropical de modernidade inconclusa, onde valores e estruturas procedentes da Ilustração mesclam-se a arcaísmos e desigualdades. Pouquíssimos países têm índice de mortes por covid como o Brasil, e talvez nenhum outro apresente tamanha parcela da população contaminada por tão ardente negacionismo.

Como interpretar esse tortuoso desvio da racionalidade em direção a um obscurantismo de índole medieval? Se fossem apenas as camadas populares que expusessem sua cegueira, poderíamos atribuí-la à falta de educação formal, mas quem igualmente anda pelas ruas, sem máscaras e sem cuidados, são indivíduos procedentes dos estratos médios e elevados da nação. Seriam psicóticos que perderam o chão firme da realidade, arrastados por concepções delirantes e incapazes de entender as mais óbvias evidências que contradizem suas fantasias disformes?

Ou, quem sabe, seriam pessoas que, fragilizadas pela pressão de algo assustador, adotam uma postura onipotente, recusando-se a encarar a força devastadora do vírus, minimizando-a ou negando-a, valendo-se para isso de mecanismos de defesa tão comuns à condição humana? Talvez alguns desses seres, sobremodo os mais jovens, educados em um contexto de egoísmo e feroz individualismo, tenham varrido de suas almas congeladas toda e qualquer empatia pelo próximo, considerando o mundo somente a partir dos ditames vindos das zonas malignas de sua interioridade. Seriam monstros morais?

Ou será que os negacionistas espelhariam uma sujeição ainda mais arrepiante, submetendo-se ao poder coletivo que emana de visões totalizantes e fechadas de mundo, conhecidas como ideologias? Mutilação da amplitude universalista do Iluminismo, mas também produto dele, um sistema ideológico oferece aos indivíduos noções rígidas de ordem e equilíbrio que se contrapõem ao caos, à multiplicidade e à variedade de um universo problemático, eterno palco de conspirações e de inimigos que devem ser destruídos. Oferece também consolo contra as tormentas da vida, mas, em especial, a sensação de pertencimento a uma comunidade em que todos compartilham as mesmas convicções e os mesmos projetos. Neste sentido, ideologias autocráticas de esquerda e direita não se diferem, ambas indicam o caminho do paraíso, um mundo luminoso sem incertezas nem dissensões. Contudo, a terra prometida da esquerda situa-se no futuro; já a utopia da direita é uma utopia arcaica, reacionária, impregnada de misticismo e de aversão ao moderno. Daí a atração que exerce sobre os segmentos mais atrasados do pensamento religioso. Daí o seu ódio à Ciência, à tolerância e à Cultura. Sua expressão perfeita é o aspirante a caudilho que nos governa. O fato de que pessoas com formação universitária sigam seus comentários lunáticos a respeito da pandemia e da vida em geral demonstra que os sistemas ideológicos podem dominar, de modo tirânico, as mentes de quaisquer criaturas, inclusive as mais cultas.

No entanto, nem todos os negacionistas enquadram-se neste esboço explicativo. Talvez seja necessário supor que haja, no coração humano, outros fatores determinantes que não apenas os da deformação moral ou os da submissão ideológica. Estudado por Marx, no campo específico do trabalho capitalista, o conceito de alienação expandiu-se e veio a delimitar com propriedade os indivíduos que (inconsciente ou voluntariamente) não intentam ou não conseguem perceber – com autonomia de consciência – a natureza complexa e movediça da realidade. São as massas alienadas das quais nos fala Ortega y Gasset. São aqueles que hoje, no Brasil, desconsideram a Ciência por indiferença, por não querer conhecê-la ou por encarar o real empírico apenas como uma sucessão de espasmos nebulosos e enigmáticos.

A antítese da alienação e do irracionalismo é o pensar por si próprio, em situação de liberdade e na perspectiva de um compromisso com o mundo. Pensar com soberania significa angústia de decifração, esforço de esclarecimento, celebração do saber, questionamento dos fundamentos da existência. Esses são os elementos definidores da racionalidade ilustrada. São também os escudos mais sólidos que possuímos contra as hordas procedentes das regiões tenebrosas. Devemos erguê-los para preservar a única via possível para o progresso, para a democracia e para a emancipação social.